terça-feira, 22 de agosto de 2017

Um Quarto com Vista. E.M. Foster. «Uma troca. Os turistas de classe mais alta ficaram chocados e tiveram pena dos recém-chegados. A menina Bartlett, em resposta, abriu a boca o menos possível»

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A Bertolini
«A Signora não podia fazer uma coisa destas, disse a menina Bartlett, de maneira nenhuma. Tinha-nos prometido quartos para sul com vista, e juntos. E em vez disso estamos em quartos para norte, isto são quartos para norte, dão para um pátio e estão muito separados. Oh, Lucy! E além disso é cockney!, disse Lucy, que tinha ficado ainda mais escandalizada pelo inesperado sotaque da Signora. É como se estivéssemos em Londres. Olhou para as duas filas de ingleses sentados à mesa, para a fila de garrafas de água e de vinho tinto que corriam entre eles, para os retratos da falecida rainha e do falecido poeta laureado pendurados atrás, com pesadas molduras, para a nota da igreja anglicana (rev. dr. Eager, Oxford), que era a outra única decoração da parede. Charlotte, não tem também a sensação de que podíamos muito bem-estar em Londres? É-me difícil acreditar que lá fora as coisas sejam muito diferentes. Deve ser por estar tão cansada.
Esta carne com certeza que já foi usada para sopa, disse a menina Bartlett, largando o garfo. Eu queria ver o Arno. Os quartos que a Signora nos prometeu na sua carta dariam para o Arno. A Signora não podia fazer-nos uma coisa destas. Não há direito! A mim, qualquer canto me serve, prosseguiu a menina Bartlett, mas acho realmente uma pena que tu não tenhas um quarto com vista. Lucy sentiu que tinha sido egoísta. Charlotte, não me trate com tantos mimos. A Charlotte também merece ter vista para o Arno. Isso mesmo. O primeiro quarto que vagar para a parte da frente...
Será para ti, disse a menina Bartlett, a quem a mãe de Lucy pagava parte das despesas de viagem, uma generosidade a que ela fazia muitas delicadas referências. Não, não, será para a Charlotte. Insisto. A tua mãe nunca me perdoaria, Lucy. Nunca me perdoaria a mim. As vozes das senhoras animaram-se e, para falar verdade, tornaram-se um pouco insistentes. Estavam cansadas e, sob o disfarce da generosidade, brigavam. Alguns dos companheiros de mesa trocaram olhares e um deles, uma daquelas pessoas mal-educadas que às vezes se encontram no estrangeiro, curvou-se para a frente sobre a mesa e meteu-se na discussão. Disse: o meu quarto tem, o meu tem vista.
A menina Bartlett teve um sobressalto. Geralmente nas pensões as pessoas olhavam-se durante um dia ou dois antes de meterem conversa e muitas vezes só descobriam que deveriam fazê-lo depois de terem partido. Sabia que o intruso era mal-educado mesmo antes de ter olhado para ele. Era um homem idoso, forte, com um rosto claro e bem barbeado e os olhos grandes. Havia qualquer coisa infantil naqueles olhos, embora não fosse a infantilidade da senilidade. A menina Bartlett não se deteve a pensar no que poderia exactamente ser porque o seu olhar se desviou para a sua maneira de vestir, que não lhe agradou nada. Provavelmente ele estava a tentar travar conhecimento com elas antes de elas estarem bem ao corrente de tudo. Assim, quando ele lhe falou ela assumiu uma expressão confusa e disse: vista? Oh. A vista! É uma vista encantadora!
Este aqui é o meu filho, disse o ancião, chama-se George. O quarto dele também tem vista. Ah!, disse a menina Bartlett, sofreando Lucy, que estava prestes a falar. O que eu quero dizer, continuou ele, é que podem ficar com os nossos quartos, e nós ficamos com os vossos. Uma troca. Os turistas de classe mais alta ficaram chocados e tiveram pena dos recém-chegados. A menina Bartlett, em resposta, abriu a boca o menos possível e disse: muito obrigada, mas nem pensar nisso. Porquê?, perguntou o ancião, com os dois punhos na mesa. Porque nem pensar nisso, obrigada. Deve compreender, não gostamos de aceitar..., começou Lucy. A prima conteve-a de novo. Mas porquê?, insistiu ele.
As mulheres gostam de olhar para a vista e os homens não. Bateu com os punhos como um rapazinho travesso e virou-se para o filho: George, convence-as! É óbvio que ficarão com os nossos quartos, disse o filho. Não há mais nada a dizer. Não olhou para elas enquanto falava, mas a sua voz era perplexa e triste. Lucy também estava perplexa, mas viu que estavam metidas naquilo que se chama, uma cena, e teve a estranha sensação de que, dissessem o que dissessem aqueles turistas malcriados, o caso continuaria e aprofundar-se-ia até deixar de ser sobre vistas e quartos, mas sobre..., bem, sobre qualquer coisa completamente diferente, em que ela nunca tinha pensado antes. Agora o ancião atacou a menina Bartlett quase violentamente: porque é que ela não queria trocar de quarto? Que possível objecção tinha? Eles retirariam as suas coisas em meia hora». In E.M. Foster, Um Quarto com Vista, 1908, 1978, Relógio D’Água Editores, 2011, ISBN-978-989-641-246-3.

Cortesia de Relógiod’águaEditores/JDACT