segunda-feira, 18 de setembro de 2017

O Mundo da Transgressão Social. Educar. «À luz do dia em que se passeiam os senhores, senhoras, meninas e meninos da boa sociedade, opõem-se as trevas da noite onde se movem boémios, prostitutas e outros marginais»

Cortesia de wikipedia

Criminosos, boémios, prostitutas e outros marginais
«Como qualquer outra época, o século XIX foi povoado por personagens que de modo mais ou menos sistemático desafiaram as suas regras de boa convivência social. Com rituais, espaços e horários relativamente específicos, ora claramente distintos dos da população comum, ora em intersecção com eles, estes eram indivíduos ou grupos em situações que, de algum modo, entravam em ruptura com os valores da sociedade estabelecida, mesmo quando dela faziam parte integrante. A sociedade burguesa que caracteriza o século XIX no mundo ocidental, construiu uma representação moralista do seu mundo ideal que estava em choque com muitas das condições do quotidiano de grande parte das populações que então habitavam os campos e cidades das nações ocidentais. As severas regras de conduta propostas pela nova elite politico económica, se eram adequadas ao modelo de vida de uma estreita faixa da sociedade, familiar, sóbrio, racional, avesso à desordem, ao excesso e ao protesto, revelavam-se claramente desenquadradas das condições concretas de existência de muitos indivíduos das mais diversas origens. Os comportamentos alternativos ao modelo ideal que necessariamente se verificavam, podiam com ele entrar em mais ou menos frontal confronto. Os que de forma mais evidente chocavam com as propostas burguesas seriam associados a um universo comum de transgressão e marginalidade. Se na representação burguesa da sociedade oitocentista se reconhece a facilidade e rapidez com que procedia à catalogação dos fenómenos sociais e na caracterização de tipos, não é menos verdade que muitos deles eram remetidos, em conjunto, para uma amálgama comum de comportamentos associados a uma patologia social, de contornos vastos e protagonistas variados. No seu interior podiam mover-se prostitutas profissionais ou ocasionais, perigosos criminosos de delito comum reincidentes ou pequenos larápios de circunstância, velhos boémios em permanente busca de novas experiências ou jovens burgueses em iniciação nos prazeres da vida, marialvas, fadistas, operários em busca de diversão, que todos eram identificados com um universo comum que era essencial circunscrever, já que se verificaria ser impossível erradicar por completo.
Se estes fenómenos e indivíduos já tinham uma natural tendência para ocorrerem e se moverem em espaços e horários próprios da vida das comunidades, a sociedade burguesa não deixaria de vincar e reforçar todos os sinais de diferenciação entre o seu mundo, o da Ordem, e o de todos que cediam à tentação na queda no abismo da desordem. As elites políticas, um pouco por todo o lado, como em Portugal, quando estabilizam o seu modo de vida, nascido da quase generalizada vitória da ideologia liberal burguesa e do seu modo de vida específico, procuram ordenar o mundo onde vivem. Ordenar os indivíduos, depois de uma prolongada época de convulsão (em virtude das sequelas de 1789), refrear-lhes os excessos, atribuir-lhes uma função útil na sociedade, que se não é tão firmemente ditada pelo nascimento como nos tempos do absolutismo de origem feudal, não deixa de obedecer a um desejo de harmonia e estabilidade social, abertamente avessa a manifestações de contestação.
De acordo com este sistema de valores, a criminalidade, a prostituição, a boémia seriam crescentemente apresentadas como protagonizadas por indivíduos à margem dos valores da nascente cultura burguesa, oitocentista e, mais tarde por afinidade, dita vitoriana, em virtude da cristalização dos seus fundamentos verificada na sociedade britânica da segunda metade do século. As chamadas classes perigosas viriam a ser objecto, durante o século XIX, de sucessivos esforços de marginalização compulsiva, na tentativa do seu afastamento dos circuitos onde circulavam as classes abastadas e elegantes. Esses grupos viviam quotidianos alternativos ao ideal, que entravam em colisão com as regras da sociedade liberal que sobre eles exercia o seu poder e autoridade, tentando afastá-los dos seus itinerários correntes, para o que lhes procurava determinar espaços e horários próprios, simétricos aos seus, num sistema dicotómico, redutor e que nunca corresponderia verdadeiramente a uma realidade que se tentava, esforçadamente, enquadrar em tipologias.
Embora associassem à irracionalidade, à desordem e ao caos a amálgama de comportamentos dos grupos sobre os quais consideravam necessário um firme exercício da autoridade, por viverem quotidianos alternativos, criminais e perigosos para a ordem social, os analistas da sociedade oitocentista esforçavam-se insistentemente por categorizá-los e idealizá-los quase tanto como a (falsa) harmonia em que imaginavam viver as camadas dominantes de sucesso. Num quadro mental extremamente maniqueísta tudo se parece desenvolver em oposições simples de compreender: à respeitável família burguesa em que os progenitores fazem uma divisão de carácter sexual das respectivas funções no emprego e no lar, reunindo-se placidamente ao fim do dia para um serão em comum com os filhos obedientes, opõem-se núcleos familiares irregulares, lares desfeitos, crianças abandonadas, produtos e agentes de muitos dos comportamentos desviantes detectáveis na sociedade. Às ocupações profissionais de sucesso, (re)produtoras de riqueza, opõem-se as artes duvidosas do crime, em que se vive à custa de expedientes e do alheio. À luz do dia em que se passeiam os senhores, senhoras, meninas e meninos da boa sociedade, opõem-se as trevas da noite onde se movem boémios, prostitutas e outros marginais. Em Lisboa, às artérias da cidade elegante, do Rossio, ao Chiado, ao Passeio Público, antes, e à Avenida, depois, aos jardins da Estrela e de S. Pedro de Alcântara, onde a iluminação pública começava a avançar opõem-se os becos e vielas dos mais velhos bairros da cidade (Alfama, Mouraria, Madragoa), onde se amontoam, em emaranhados sujos, escuros e labirínticos, as tabernas, bordéis, hospedarias e habitações de duvidosa frequência». In Educar, O Mundo da Transgressão Social, Criminosos, boémios, prostitutas e outros marginais,
 Wordpress, Boémia, Wikipédia, 2007.

Cortesia de Wikipédia/Educar/JDACT