quarta-feira, 11 de outubro de 2017

A Cruz de Esmeraldas. Cristina de Torrão. «O bispo chama a atenção para as obrigações dos bons cristãos declarou o rapaz. Diz que devemos colocar o serviço de Deus e da Cristandade à frente dos nossos desejos materiais»

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«(…) Porquê?, perguntou Gunther, no falar arrastado de quem bebeu demais. Pois eu acho que eles combinam muito bem. Konrad tornou a olhar para o irmão, que parecia de repente ter-se curado de várias semanas de enjoos. Ela, por seu lado, começava a sorrir-lhe tímida. E o mais velho acabou a suspirar: está bem, pronto! Assim que a dona do bordel notou que o estrangeiro grande de cabelos compridos acabara de protestar, tornou a adoptar uma expressão satisfeita. Juntou a mão de Johann à da rapariguita e conduziu-os a um quarto. Konrad, que os seguia com os olhos, desabafou: espero que corra tudo bem. E o que é que haveria de correr mal, homem?, retorquiu Hadwig. Eles bem saberão o que têm a fazer, atalhou Gunther. Hadwig desatou às gargalhadas, mas Konrad manteve a sua expressão preocupada. O loiro dirigiu-se a Gunther: pelos vistos, já fizeste a tua escolha. Oh sim. Fico-me por este colosso! Hadwig deu uma palmada nos ombros de Konrad e sugeriu: anda ver as outras! Vamos Konrad?, perguntou Johann, depois da ceia. Hoje não vou à cidade. Porquê? Depois de três noites de bazófia preciso de uma pausa. Então..., terei que ir sozinho. Konrad olhou espantado para o irmão, que inquiriu: o que foi? Já sei o caminho, não me perco. Como queiras, por mim... Só que..., preciso de dinheiro... Konrad atirou-lhe uma moeda e o rapazito deixou o barco de olhos radiantes e de passos leves como um passarinho. Hadwig, que estava sentado ao lado do amigo, comentou a rir: o pequeno agora não quer outra coisa. Não me agrada que procure sempre a mesma rapariga. Qual é o problema? Será bom ligar-se assim a uma rameira? Ora, não protejas tanto o teu irmãozinho. De qualquer maneira, partiremos em breve. Já vai sendo tempo. Estes ares até me agradam, mas não devemos esquecer que a Terra Santa nos espera. Tão depressa não chegaremos lá. Achas mesmo que vamos participar no cerco a essa Lusbuna..., ou Lisbona, ou lá como o raio da cidade se chama? Vamos ver o que o bispo do Porto tem para nos dizer amanhã. O nosso comandante parece tencionar seguir viagem, mas o inglês, esse Hervey de Glanville, está com vontade de ajudar os portugueses.
Sim, um dos seus prelados, Gilbert de Hastings, já travou amizade com o bispo. Mas os seus próprios homens não estão pelos ajustes. No fim, terão que obedecer ao comandante, tal como nós. Na manhã seguinte, o bispo do Porto fez a sua pregação no largo da Sé, o ponto mais alto da cidade. Tratava-se de uma ocasião solene, o prelado tinha a seu lado o arcebispo de Braga, representante máximo da Igreja Portuguesa, os bispos de Viseu e Lamego e um fidalgo cavaleiro em representação d'el-rei Afonso Henriques. Como o largo da Sé não era suficientemente grande para todos os quinze mil cruzados e Pedro Pitões pregava em latim, língua que apenas uma minoria entendia, a maioria resolveu esperar nos barcos pelos seus prelados, que lhe transmitiriam a mensagem do bispo. Konrad e os seus amigos pertenciam, no entanto, aos poucos mais de mil homens que assistiam à pregação, pois Johann não tinha dificuldades em traduzi-la. O bispo chama a atenção para as obrigações dos bons cristãos declarou o rapaz. Diz que devemos colocar o serviço de Deus e da Cristandade à frente dos nossos desejos materiais. Portugal não é um reino rico, gasta muito na guerra contra os infiéis. Isto não começa nada bem, comentou Hadwig. Estarão eles à espera que os ajudemos por nada?
Ele pede-nos que não estejamos ansiosos por prosseguir viagem, continuou Johann. Diz que o combate aos hereges aqui nesta terra é tão importante e tem tanto efeito sobre os nossos pecados quanto os combates na Terra Santa. Os outros olharam-se desconfiados e Konrad acabou por sussurrar: em Speyer, Bernardo de Claraval só garantiu absolvição para os combatentes na Terra Santa. Mas estes mouros daqui não são infiéis como os outros?, indagou Gunther. Os outros encolheram os ombros e já Johann fazia sinal para que se calassem, enquanto ouvia atentamente o latim de Pedro Pitões. Lembra-nos que as lutas contra os infiéis fazem parte de uma guerra justa, disse por fim. Cruzados dignos desse nome não podem recusar a luta contra os infiéis, neste caso, os mouros cruéis. Mais diz que as lutas entre cristãos, não só enfraquecem a Cristandade, como são condenadas por Deus e pela Igreja. Combater só é pecado quando não tem o consentimento de quem dispõe da legítima autoridade: a Igreja. Neste ponto, alguns dos cruzados resolveram intervir. Exigiam saber com que recompensas podiam afinal contar, caso libertassem Lusbuna das mãos dos infiéis. O bispo do Porto retorquiu que se tratava de uma cidade rica, mas que ele não estava autorizado a negociar a recompensa. Por isso, pedia-lhes em nome d'el-rei que velejassem até à foz do Tejo, onde Afonso Henriques se encontraria com eles». In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT