segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Os Íntimos. Inês Pedrosa. «Curei-me por causa do que sofri por esta mulher. Horas infindáveis de solidão com as agulhas do ciúme moendo-me pele e vísceras e crânio e coração»

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«(…) As suas mãos estão a tremer, doutor. Passa-se alguma coisa? Passa-me o bisturi e cala-te. Passa-se que em vez de uma enfermeira experiente, serena, calada, que me ajude, tenho de dar aulas práticas a estagiários como tu, pesporrentes e palradores, ao mesmo tempo que tento livrar do mal a mama de uma mulher. Com cuidado. Com as mamas é preciso um cuidado particular. Não é só uma mama, lembra-te disso, por favor, Afonso. É a minha auto-estima. Por favor, Afonso. Uma das vantagens de se nascer homem é não centrar a auto-estima nas mamas, à mercê de qualquer azar do destino. Um homem não tem de pedir que, por favor, lhe poupem a auto-estima. Um homem ri-se da palavra auto-estima. Auto-estima nem sequer é uma palavra: é um adereço, um postiço de salvação. Um airbag. Em forma de mama. A cabra. A sonsa. A traidora. Agora em versão chorosa. Por favor, Afonso. Em nome do que vivemos. O que vivemos não é para aqui chamado. Se eu quisesse lembrar-me do que vivemos, teria de me lembrar do dia em que tu me disseste que precisavas de um tempo de pousio. E então lembrar-me-ia de que uma semana depois te encontrei pousada no colo de outro. Éramos garotos, Afonso. Foste o meu primeiro amor. Tanto desces por causa de uma mama, Elisa? Tentarei salvar-te a pele. Evitarei as cicatrizes. Sei que é injusto que as mulheres sejam discriminadas pelas cicatrizes. Sei também que é injusto que aos homens se exijam cicatrizes. Para mim, agora, és só uma doente. Mais uma. E isso é bom para ti, bom para a tua auto-estima mamária. Porque eu sou um profissional. Um bom profissional, como tu hoje sabes.
Só aos carniceiros não tremem as mãos, abécula. Olha para o que faço. Aprende alguma coisa. A destreza das mãos começa no cérebro. Que também treme. Pelo menos se estiver vivo. O primeiro amor, o tanas. Irrita-me esse arquivo organizado a que as mulheres chamam romantismo. Como se houvesse segundo, terceiro, quarto, quinto amor. Como se o amor fosse a escada de um prédio de apartamentos. O amor é uma coisa que começa velha, uma forma de demência que nos leva a concentrar os corpos e rostos que desejámos num só. O amor. Esta massa esponjosa, doente, que tanto me excitava. Curei-me por causa do que sofri por esta mulher. Horas infindáveis de solidão com as agulhas do ciúme moendo-me pele e vísceras e crânio e coração. Dias e noites triturando tudo o que eu era, com um rigor de tanque de guerra. Eu era tão pouco. Um garoto deslumbrado com a descoberta do corpo de uma mulher. Acreditava que aquela mulher era única, e que seria minha para sempre. Desculpa, tenho de cortar mais do que pensava, Elisa.
Desconfia dos médicos cujas mãos não tremam. São os que não sentem medo que matam. Tenho medo de deixar de ter medo. De deixar de me importar. De começar a pensar que o que eu faço não é importante, porque todos temos de morrer, um dia ou outro. Substituímos o tempo pelo espaço para não pensarmos na morte. Decretámos o fim da História para podermos trocar o rosto trágico que nos distingue por um rosto belo, sem marcas nem território. O rosto da minha filha, como seria hoje? Desenho-o incontáveis vezes. Acabo sempre por o apagar, porque não o reconheço. Não existe. Hoje é dia de jogo. Dia de jantar com os rapazes. Depois de salvar a mama de Elisa, a rapariga que me iniciou nos prazeres do sexo e na arte da traição. Gostava de não lhe deixar marcas. Um cavalheiro nunca deixa marcas. Mas eu não sou um cavalheiro. Fiz o melhor que podia, Elisa. Depois arranjo-te um excelente cirurgião plástico. Arranjo-te uma mama de silicone, perfeita como sempre gostaste de ser. Chamem-me vaidoso, se isso vos der prazer. O prazer de descobrir gente mais imprestável do que nós, isso que alimenta a literatura. Sou feito de papel e tinta, pelo menos neste momento em que os vossos olhos deslizam sobre esta página. Nem sequer ainda me vislumbraram os contornos, e já sabem que me dedico a aventuras sexuais pouco ortodoxas e que sou vaidoso. O conteúdo antes da forma. A moral de perna ao léu, correndo do fim da história para o seu início, poupando-vos a mariquice das entrelinhas. O caos em vez do corrimão do aforismo. Convém-vos? É-me indiferente o que vos convém, o modo como vos ensinaram a ler. Introdução, desenvolvimento, conclusão. Um enredo amorosamente bordado, capítulo a capítulo, com personagens espreguiçando-se nos lençóis da prosa, despindo-se da banalidade inaugural para nos desvendarem as suas almas repletas de cambiantes até ao clímax, de preferência trágico. A tragédia cai sempre bem, confere-nos umas sombras de sagacidade. Muita palha para criar ambiente, um celeiro cheio de crepúsculos dolentes e episódios marginais. Tralha, comboios de móveis e acessórios. Sou homem, não gosto de ler romances. Fiz de conta que gostava, durante uns anos, para caçar miúdas.
Pensava que aprenderia a caçá-las melhor se lesse o mesmo que elas, como se pudesse penetrar-lhes nos sonhos. Mas os sonhos das mulheres são em geral diferentes dos desejos que rugem dentro delas. Uma espécie de biombo contra a brutalidade que querem, porque ainda são animais. Como nós. Os romances têm princípio, meio e fim, regulação de tempos e temperatura. Fazem dos sentimentos pautas instrumentais convergindo para um concerto de orquestra. Eu não tenho sentimentos desses, que se possam dedilhar, analisar, apreciar e aplaudir. Tenho uma massa suja de nervos e sangue que me serve muito bem. Às vezes dói, às vezes dança. Uma caixa negra que será enterrada comigo, sem chatear ninguém. Não me importa o que pensem ou digam de mim. Estou habituado. Os homens chamam-me vaidoso, as mulheres, egoísta. Não há homem que não pareça egoísta diante do manancial de amor de uma mulher. Multiplicação milagrosa: quanto menos se lhes dá mais elas têm para dar. Gostam de se sentir superiores. Pelo menos as mulheres não têm preconceitos contra a vaidade. Poucas coisas dão tanto prazer à espécie humana como apontar os defeitos dos seus iguais. Para os maus hábitos de qualquer outra espécie arranja-se sempre desculpa. A Humanidade é a única culpada dos males do mundo: eis a grande descoberta da recta final do século XX. Porquê?» In Inês Pedrosa, Os Íntimos, Publicações dom Quixote, 2010, ISBN 978-972-204-047-1.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT