sexta-feira, 24 de novembro de 2017

A Relíquia. Eça de Queirós. « Apenas completei nove anos, a Titi mandou fazer camisas, um fato de pano preto, e colocou-me, como interno, no colégio dos Isidoros»

Cortesia de wikipedia

Sobre a nudez forte da verdade. O manto diáfano da fantasia
«(…) Enfim, num domingo de manhã, estando a chuviscar, chegamos a um casarão, num largo cheio de lama. O Senhor Matias disse-me que era Lisboa; e, abafando-me no meu xale-manta, sentou-me num banco, ao fundo de uma sala húmida, onde havia bagagens e grandes balanças de ferro. Um sino lento tocava à missa; diante da porta passou uma companhia de soldados, com as armas sob as capas de oleado. Um homem carregou os nossos baús, entramos numa sege, eu adormeci sobre o ombro do Matias. Quando ele me pôs no chão, estávamos num pátio triste, lajeado de pedrinha miúda, com assentos pintados de preto; e na escada uma moça gorda cochichava com um homem de opa escarlate, que trazia ao colo o mealheiro das almas. Era a Vicência, a criada da tia Patrocínio. O Matias subiu os degraus conversando com ela, e levando-me ternamente pela mão. Numa sala forrada de papel escuro, encontramos uma senhora muito alta, muito seca, vestida de preto, com um grilhão de ouro no peito; um lenço roxo, amarrado no queixo, caía-lhe num bioco lúgubre sobre a testa; e no fundo dessa sombra, negrejavam dous óculos defumados. Por trás dela, na parede, uma imagem de Nossa Senhora das Dores olhava para mim, com o peito trespassado de espadas. Esta é a Titi, disse-me o Matias. É necessário gostar muito da Titi... É necessário dizer sempre que sim à Titi! Lentamente, a custo, ela baixou o carão chupado e esverdinhado. Eu senti um beijo vago, de uma frialdade de pedra; e logo a Titi recuou, enojada. Credo, Vicência! Que horror! Acho que lhe puseram azeite no cabelo! Assustado, com o beicinho já a tremer, ergui os olhos para ela, murmurei: sim, Titi.
Então o Matias gabou o meu génio, o meu propósito na liteira, a limpeza com que eu comia a minha sopa à mesa das estalagens. Está bem, rosnou a Titi secamente. Era o que faltava, portar-se mal, sabendo o que eu faço por ele... Vá, Vicência, leve-o lá para dentro..., lave-lhe essa ramela; veja se ele sabe fazer o sinal da cruz... O Matias deu-me dous beijos repenicados. A Vicência levou-me para a cozinha. À noite vestiram-me o meu fato de veludilho; e a Vicência, séria, de avental lavado, trouxe-me pela mão a uma sala em que pendiam cortinas de damasco escarlate, e os pés das mesas eram dourados como as colunas de um altar. A Titi estava sentada no meio do canapé, vestida de seda preta, toucada de rendas pretas, com os dedos resplandecentes de anéis. Ao lado, em cadeiras também douradas, conversavam dous eclesiásticos. Um, risonho e nédio, de cabelinho encaracolado e já branco, abriu os braços para mim, paternalmente. O outro, moreno e triste, rosnou só boas noites. E da mesa, onde folheava um grande livro de estampas, um homenzinho, de cara rapada e colarinhos enormes, cumprimentou, atarantado, deixando escorregar a luneta do nariz.
Cada um deles vagarosamente me deu um beijo. O padre triste perguntou-me o meu nome, que eu pronunciava Tedrico. O outro, amorável, mostrando os dentes frescos, aconselhou-me que separasse as sílabas e dissesse Te-o-do-ri-co. Depois acharam-me parecido com a mamã, nos olhos. A Titi suspirou, deu louvores a Nosso Senhor de que eu não tinha nada do Raposo. E o sujeito de grandes colarinhos fechou o livro, fechou a luneta, e timidamente quis saber se eu trazia saudades de Viana. Eu murmurei, atordoado: sim, Titi. Então o padre mais idoso e nédio chegou-me para os joelhos, recomendou-me que fosse temente a Deus, quietinho em casa, sempre obediente à Titi... O Teodorico não tem ninguém senão a Titi... É necessário dizer sempre que sim à Titi... Eu repeti, encolhido: sim, Titi. A Titi, severamente, mandou-me tirar o dedo da boca. Depois disse-me que voltasse para a cozinha, para a Vicência, sempre a seguir pelo corredor... E quando passar pelo oratório, onde está a luz e a cortina verde, ajoelhe, faça o seu sinalzinho da cruz...
Não fiz o sinal da cruz. Mas entreabri a cortina; e o oratório da Titi deslumbrou-me, prodigiosamente. Era todo revestido de seda roxa, com painéis enternecedores em caixilhos floridos, contando os trabalhos do Senhor; as rendas da toalha do altar roçavam o chão tapetado; os santos de marfim e de madeira, com auréolas lustrosas, viviam num bosque de violetas e de camélias vermelhas. A luz das velas de cera fazia brilhar duas salvas nobres de prata, encostadas à parede, em repouso, como broquéis de santidade; e erguido na sua cruz de pau preto, sob um dossel, Nosso Senhor Jesus Cristo era todo de ouro, e reluzia. Cheguei-me devagar até junto da almofada de veludo verde, pousada diante do altar, cavada pelos piedosos joelhos da Titi. Ergui para Jesus crucificado os meus lindos olhos negros. E fiquei pensando que no céu os anjos, os santos, Nossa Senhora e o Pai de todos, deviam ser assim, de ouro, cravejados talvez de pedras; o seu brilho formava a luz do dia; e as estrelas eram os pontos mais vivos do metal precioso, transparecendo através dos véus negros, em que os embrulhava à noite, para dormirem, o carinho beato dos homens. Depois do chá, a Vicência foi-me deitar numa alcovinha pegada ao seu quarto. Fez-me ajoelhar em camisa, juntou-me as mãos, e ergueu-me a face para o céu. E ditou os Padre-Nossos que me cumpria rezar pela saúde da Titi, pelo repouso da mamã, e por alma de um comendador que fora muito bom, muito santo e muito rico o que se chamava Godinho.
Apenas completei nove anos, a Titi mandou fazer camisas, um fato de pano preto, e colocou-me, como interno, no colégio dos Isidoros, então em Santa Isabel. Logo nas primeiras semanas liguei-me ternamente com um rapaz, Crispim, mais crescido que eu, filho da firma Teles, Crispim & Cia. Donos da fábrica de fiação à Pampulha. O Crispim ajudava à missa aos domingos; e, de joelhos, com os seus cabelos compridos e louros, lembrava a suavidade de um anjo. Às vezes agarrava-me no corredor e marcava-me a face, que eu tinha feminina e macia, com beijos devoradores; à noite, na sala de estudo, à mesa onde folheávamos os sonolentos dicionários, passava-me bilhetinhos a lápis chamando-me seu idolatrado e prometendo-me caixinhas de penas de aço... À quinta-feira era o desagradável dia de lavarmos os pés. E três vezes por semana o sebento padre Soares vinha, de palito na boca, interrogar-nos em doutrina e contar-nos a vida do Senhor. Ora, depois pegaram, e levaram-no de rastos a casa de Caifás... Olá, o da pontinha do banco, quem era Caifás?... Emende! Emende adiante!... Também não! Irra, cabeçudos! Era um judeu e dos piores... Ora diz que, lá num sítio muito feio da Judeia, há uma árvore toda de espinhos, que é mesmo de arrepiar... A sineta do recreio tocava; todos, a um tempo e de estalo, fechávamos a cartilha». In Eça de Queirós, A Relíquia, 1887, Typographia de A. J. da Silva Teixeira, Porto, 1887, Editora Livros do Brasil, Obras de Eça de Queirós, 2011, ISBN 978-989-711-008-5.

Cortesia de ELBrasil/JDACT/