sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Aos Olhos de Deus. José Manuel Saraiva. «Sossega, minha pobre jovem, sossega, sussurrou o fidalgo com ternura, ao mesmo tempo que lhe ia alisando o cabelo com as mãos roxas de frio e de desejo»

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«(…) E, claro, a pregar a fé de Cristo ressuscitado! Se não fossem eles, com a vontade de Deus e a bênção de Sua Alteza, bem entendido, o mundo estaria ainda na fase em que as mulheres se viam de armadura e elmo a lutar de espada em punho ao lado dos homens nos campos de batalha. Reconhecia, no entanto, que um homem seria sempre um homem; uma mulher seria sempre uma mulher. Um princípio que não punha em causa, nem jamais podia pôr. O que punha em causa, isso sim, era a ideia de que o mundo e o homem ainda não tinham mudado nada. Ao ouvir os argumentos lapidares do amigo, o rei levantou-se, o nobre imitou-o e ambos se dirigiram para a porta. Estava pois acabada a audiência e autorizado o desejo de Diogo Pacheco. Mas antes de dar saída ao jurisconsulto, cheio de curiosidade, Manuel I ainda perguntou: como é essa Raquel, que não conheço? Já por várias vezes vos falei dela, Alteza. É uma formosa mulher, com apenas vinte anos, que salvei da fogueira por altura do tumulto de há sete anos, em Lisboa. Os pais foram queimados no Rossio e ela só não teve o mesmo destino porque a escondi em casa de um ilustre amigo, antigo professor de Leis, que já morreu. Trazei-a aqui, à corte, quando vierdes de Roma, disse. Gostava de a conhecer. Diogo Pacheco sorriu, abanou a cabeça em sinal de reprovação, deu um abraço ao rei, menos caloroso do que o habitual, e foi-se embora. Vou escrever a oração, meu Senhor, prometeu, à despedida.
Ao sair da Casa da Mina, provavelmente a sede da coroa mais megalómana, devassa e parasitária da Europa, Diogo Pacheco suspirou de alívio e de vaidade, subiu a gola do gibão para se resguardar do frio intenso e, sempre em passo rápido, seguiu pelo caminho imundo e escalavrado à beira-Tejo até ao sopé da colina do castelo. Lá morava a formosa Raquel Aboab, num discreto anexo da família de um marinheiro a quem, havia oito meses, o fidalgo pagava uma avultada renda mensal para manter a rapariga em segurança. Raquel Aboab, mulher de estatura média, pele morena e cabelos negros e lisos, nunca saía do seu miserável aposento, salvo nas circunstâncias em que precisava de ir à latrina do bairro ou deitar o lixo na estrumeira, junto à casa. E mesmo assim executava tudo com o máximo cuidado e a atenção devida, aproveitando a hora antes de escurecer por a considerar menos perigosa para a sua salvaguarda: de dia podia ser vista ou identificada; de noite podia ser morta ou violada. As próprias vitualhas, as roupas da enxerga e a indumentária, também pagas pelo nobre, eram-lhe levadas pela família do marinheiro, que encontrou naquela arriscada forma de auxílio a uma judia um importante recurso económico para o sustento do clã.
Ao longo da história portuguesa, que levava quase cinco séculos de existência, Lisboa vivera sempre muito mais próxima do tormento que do repouso. E até mesmo nos curtos períodos de ausência de guerras e pestes, que tantas vítimas sepultavam, a cidade fora, e continuava a ser, um lugar cúmplice do ódio, do perigo e da morte. E era exactamente sobre esse triste e particular desígnio que Diogo Pacheco ia a reflectir na caminhada quando, a poucos passos do tugúrio de Raquel, encontrou a jovem a chorar, o rosto escondido entre as mãos, sob a copa de uma velha laranjeira. Que fazes aqui a uma hora destas, mulher de Deus?, quis saber o fidalgo, receando que alguém a tivesse visto. Não vês os riscos à tua beira? Visivelmente preocupado, abraçou à pressa a rapariga de modo a escondê-la sob o seu capeirote, limpou-lhe as lágrimas com a ponta dos dedos e, tomando-a pelo corpo, levou-a para casa. O compartimento era minúsculo. Nele, pouco mais espaço havia do que o reservado para o estrado, a esteira, uma mesa, um banco de pinho e a sentina. Não suporto esta loucura, meu senhor, disse Raquel, emocionada, já depois de ambos se acomodarem sobre a enxerga.
Sossega, minha pobre jovem, sossega, sussurrou o fidalgo com ternura, ao mesmo tempo que lhe ia alisando o cabelo com as mãos roxas de frio e de desejo. Não chores, porque trago boas notícias para ti. E, num tom quase imperceptível, acrescentou: para os dois... Boas notícias para mim?, admirou-se. Para ti, sim, Raquel. Após uma curta pausa de silêncio, durante a qual o homem se foi enroscando ao corpo dela numa atitude hesitante, Diogo Pacheco confidenciou-lhe que obtivera a generosa autorização de Sua Alteza para a levar a Roma. Mas, como não podia integrar a embaixada ao papa, ela teria de partir na companhia de alguns homens e de poucas mulheres que, dentro de dias, deixariam Lisboa para ir ajudar na organização da festa que os romanos estavam a preparar aos portugueses na Cidade Santa. Tenho medo, meu senhor, voltou a confessar, inquieta. Tenho medo da fogueira e da viagem, dos padres e dos sumos sacerdotes; tenho medo dos mouros e dos cristãos, e estes medos todos juntos fazem-me sentir um grande medo». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.

Cortesia de OdoLivroE/JDACT