domingo, 21 de janeiro de 2018

A Irmandade Perdida. Anne Fortier. «Desculpe interromper a sua orgia da meia-noite, falei, quando ela finalmente atendeu o telefone móvel. Fazia mais de um mês que não nos falávamos e, quando ela deu um muxoxo bem-humorado do outro lado da linha…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Segundo a maioria dos estudiosos, as amazonas jamais tinham existido em lugar algum a não ser na mitologia grega. Quem afirmasse o contrário, no melhor dos casos, era um romântico incurável. Sim, de facto, era totalmente concebível que o mundo pré-histórico tivesse sido povoado em parte por guerreiras do sexo feminino, mas os mitos sobre amazonas sitiando Atenas ou participando da Guerra de Tróia sem dúvida eram invenções de contadores de histórias na tentativa de fascinar os seus ouvintes com relatos fantásticos. Eu sempre explicava aos meus alunos que as amazonas da literatura clássica deviam ser vistas como predecessoras dos vampiros e zumbis que povoam as estantes de hoje em dia: criaturas imaginárias, terríveis e sobrenaturais, que tinham por hábito treinar as filhas nas artes da guerra e acasalar com machos aleatórios uma vez por ano. Ao mesmo tempo, contudo, essas mulheres selvagens tinham características humanas atraentes o bastante para despertar as nossas paixões secretas, nem que fosse aos olhos dos antigos escultores e pintores de vasos. Eu sempre tomava cuidado para não deixar transparecer os meus próprios sentimentos em relação ao tema; interessar-se pelo folclore das amazonas já era ruim, mas revelar que acreditava na existência delas seria pura e simplesmente um suicídio académico.
Assim que o meu chá ficou pronto, sentei-me para estudar a foto do sr. Ludwig com o auxílio de uma lupa. Tinha quase certeza de que conseguiria identificar os caracteres inscritos na parede como pertencentes a algum dos alfabetos antigos mais comuns; quando isso não aconteceu, permiti-me sentir um leve frisson de animação. Após mais alguns minutos de investigação atenta e incompreensão crescente, as possibilidades tornaram-se um arrepio a correr pela minha espinha com a mesma urgência de mensageiros num campo de batalha. O que mais me intrigou foi a universalidade dos símbolos; tinham características que tornavam quase impossível vinculá-los a algum lugar ou período específicos. Eles poderiam ser uma fraude feita naquela parede de gesso rachado logo antes de a foto ser tirada ou poderiam ter milhares de anos. Ainda assim..., quanto mais eu os olhava, mais percebia em mim uma estranha sensação de familiaridade. Era como se em algum lugar, num canto remoto do meu subconsciente, uma fera adormecida estivesse despertando. Será que eu já tinha visto aqueles símbolos antes? Caso sim, não conseguia contextualizá-los, o que me causava grande frustração. Por coincidência, uma amiga de infância, Rebecca, trabalhava havia três anos num sítio arqueológico em Creta, e eu tinha quase a certeza de que ela sabia quais organizações estavam escavando onde e em busca de quê. Com certeza, se alguém tivesse deparado com aquele tipo de inscrição em algum lugar da região mediterrânea e houvesse estabelecido qualquer vínculo com as amazonas, a dra. Rebecca Wharton teria sido a primeira a saber.
Desculpe interromper a sua orgia da meia-noite, falei, quando ela finalmente atendeu o telefone móvel. Fazia mais de um mês que não nos falávamos e, quando ela deu um muxoxo bem-humorado do outro lado da linha, percebi quanto sentia saudades dela. Eu reconheceria aquele riso em qualquer lugar: soava como alguém com ressaca de uísque, mas, no caso da curiosa Rebecca, era a consequência um tanto prosaica de ter passado o dia inteiro com a cabeça enfiada em algum buraco cheio de poeira. Estava pensando em você agorinha mesmo!, exclamou ela. Estou aqui com um coro de gregos gatos servindo-me uvas e me besuntando de azeite. A imagem fez-me rir. A probabilidade de a linda Rebecca ter intimidades com qualquer outra coisa que não fossem fragmentos de cerâmica antiga, infelizmente, era quase nula. Ela era do estilo rebelde, de viseira e short jeans cortado, ficava o dia todo de quatro no meio de um formigueiro de arqueólogos..., mas não tinha olhos para nada além do passado. Embora fosse do tipo que se vangloriava, eu sabia que, por baixo das sardas, continuava sendo a filha do pároco. Foi por isso que não teve tempo para me ligar e contar a grande novidade? Um breve farfalhar sugeriu que Rebecca estava tentando segurar o telefone entre a orelha e o ombro. Que grande novidade? É isso que me vai dizer. Quem está escavando amazonas aí na sua área? Ela soltou um de seus gritinhos estridentes de ave selvagem. O quê? Dê uma olhadela. Inclinei-me para a frente e conferi a imagem na tela do meu computador. Acabei de lhe mandar uma foto por e-mail». In Anne Fortier, A Irmandade Perdida, 2014, Editora Arqueiro, 2015, ISBN 978-858-041-543-0.

Cortesia de EArqueiro/JDACT