sábado, 6 de janeiro de 2018

As Novas Cartas Portuguesas e a Contestação do Poder Patriarcal. Maria Graciete Besse. «A dimensão mais evidente da subversão relaciona-se com a forma como as autoras falam abertamente de temas desde sempre ocultados, como o corpo e o desejo»

Cortesia de wikipedia

«(…) A pluralidade das vozes narrativas desenvolve pacientemente a teia de diversos percursos femininos, enraizados na relação problemática de Mariana Alcoforado e Chamilly. Ao longo da obra, a temática amorosa nunca ganha uma dimensão eufórica, já que a paixão se relaciona, desde as suas raízes etimológicas, com uma ideia de sofrimento. Contudo, é a partir dela que se elabora a visão de um espaço feminino cuja passividade é neutralizada pela intensidade da escrita, pela variedade das missivas  onde o cruzamento das vozes de mulheres de palavra pesada, impõe uma constante afirmação de identidade. Desta forma, a paixão de Mariana Alcoforado pelo oficial francês ultrapassa os limites da história individual para se transformar em pretexto de análise aplicável a qualquer situação amorosa e sobretudo em exercício que interroga incansavelmente o estatuto das mulheres através dos tempos, num espaço tradicionalmente fechado. O discurso sobre o amor parece constituir, desde sempre, o tema preferido da escrita produzida por mulheres. Mas, como afirma Béatrice Slama, tal facto tem raízes históricas, pois: si les femmes, dans leurs textes, parlent tant d’amour, c’est peutêtre aussi parce que c’est le seul discours qui leur soit concédé. Outra constante da escrita feminina relaciona-se com a forma epistolar. Composta quase sempre por mulheres e dirigida essencialmente a um público feminino, como observa Laurent Versini, esta forma literária permite facilmente opor dois mundos: o convento e a sociedade, o espaço feminino e o universo masculino, a clausura e a aspiração de liberdade. Em Novas Cartas Portuguesas encontramos um conjunto de cartas cuidadosamente datadas (indo de 1 de Março de 1971 a 25 de Novembro de 1971, ou seja, produzidas simbolicamente durante nove meses), que passam em revista os grandes mitos da tradição misógina. Estas cartas podem reunir-se em três grupos: as que são escritas pelas três autoras, as que são atribuídas a Mariana Alcoforado e às suas relações (Chamilly, Joana Vasconcelos, etc.) e as que são assumidas por personagens contemporâneas e muitas vezes anónimas. Assim se constitui um jogo de espelhos, de ambiguidades, de intercâmbios que permitem pensar de outra forma a história do poder, da propriedade e da dominação masculina. Por todo este discurso perpassa naturalmente uma ideia de fatalismo, relacionado com o conceito de destino ou de natureza feminina, mas a essa visão tradicional sobrepõem-se estruturas vivas, aprisionadas nos limites histórico-culturais que se confundem com a cena de uma História marcada pela misoginia. Nesta perspectiva, apesar de recorrer a uma série de elementos tradicionais, como a temática amorosa ou a forma epistolar, a obra impõe-se como um texto subversivo, na medida em que acaba por denunciar especularmente o peso dessa tradição. A dimensão mais evidente da subversão relaciona-se com a forma como as autoras falam abertamente de temas desde sempre ocultados, como o corpo e o desejo físico, a sexualidade, o prazer feminino, o fingimento enquanto forma de alimentar as ilusões masculinas, de que é exemplo a seguinte passagem: a camisa de noite levantada às virilhas assim expostas e o ar composto de quem cumpre um dever vindo, herdado de nossas  mães e avós, o prazer (não muito, claro) fingido, imitado bem, a fim de se lhes dar a constante certeza da sua vigorosa virilidade, aura: bons na cama e no trabalho, excelentes pais de família e patrões de mulher, com ordenado certo ao fim do mês a fim de se poder comer e ter carro». In Maria Graciete Besse, As Novas Cartas Portuguesas e a Contestação do Poder Patriarcal, Wikipedia, revista Latitudes nº 26, 2006.

Cortesia de rLatitudes/JDACT