sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Moll Flanders. Daniel Defoe. «Agora eu era de facto uma dama pobre, e foi naquela noite que fui atirada ao vasto mundo, pois a filha levou tudo consigo e eu não tinha para onde ir…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Não obstante, deixei-as e vivi quase um ano mais, com a minha nobre mãe de criação, e comecei a ser de muita ajuda para ela, pois já tinha quase catorze anos, era alta para a idade e parecia uma mulherzinha; todavia, tomara tanto gosto pela vida elegante na casa da senhora que já não me sentia tão à vontade como antes em minha antiga moradia e pensava que, com efeito, era maravilhoso ser uma dama de verdade, pois agora as minhas ideias do que era ser uma dama tinham mudado bastante, e pensando, como disse, em como era bom ser uma dama, apreciava estar entre damas e, portanto, ansiava voltar a morar lá. Mais ou menos três meses depois que completei catorze anos, a minha amorosa mãe de criação, aquela mulher que eu deveria chamar simplesmente de mãe, adoeceu e morreu; encontrei-me numa situação deveras triste, pois da mesma maneira que não é preciso muito para pôr fim à família de um pobre quando todos são levados ao túmulo, também, uma vez sepultada a pobre mulher, os administradores da paróquia retiraram imediatamente as crianças que estavam a seu cargo, a escola foi fechada e os alunos externos que a frequentavam viram-se obrigados a ir para casa e esperar que os mandassem para outro lugar; com relação às coisas que ela deixara, a sua filha, uma mulher casada, com seis ou sete filhos, chegou e levou tudo consigo, e, ao remover os bens, não acharam outra coisa a fazer senão zombar de mim e aconselhar a daminha a se estabelecer por sua conta, se assim desejasse.
Eu estava apavorada, quase fora de meu juízo, sem saber o que fazer, pois fora, por assim dizer, enxotada de casa e jogada no imenso mundo, e, para piorar as coisas, a honesta anciã tinha em seu poder vinte e dois xelins meus, que eram todo o capital que a daminha tinha no mundo, e quando os pedi à sua filha, ela se agastou comigo, riu de mim e disse que nada tinha a ver com aquilo. A verdade é que a boa mulher falara à filha sobre aquele dinheiro, dizendo que estava em tal lugar e que pertencia à mocinha, e chamara-me uma ou duas vezes para mo dar; infelizmente eu não estava em casa e quando voltei ela já não se achava em condições de falar; a filha, porém, depois mostrou-se honesta e me deu o dinheiro, embora no começo me tenha tratado cruelmente.
Agora eu era de facto uma dama pobre, e foi naquela noite que fui atirada ao vasto mundo, pois a filha levou tudo consigo e eu não tinha para onde ir, tampouco uma côdea de pão para comer; mas, ao que parece, alguns vizinhos que tomaram conhecimento do que se passava apiedaram-se de mim e avisaram a senhora em cuja companhia eu estivera uma semana, como contei acima, e ela enviou imediatamente a sua camareira para me buscar, e duas das suas filhas vieram com a camareira sem terem sido mandadas; fui, pois, com elas, com armas e bagagem, como se diz, e com o coração feliz, como podem imaginar; o susto provocado por minha situação causara-me tamanho impacto que já não queria ser uma dama, estava mais que disposta a ser uma criada, até mesmo qualquer espécie de criada que julgassem conveniente. No entanto, a minha nova e generosa senhora tinha melhores ideias para mim; chamo-a generosa porque ela se excedia em tudo a boa mulher em cuja casa eu estivera antes, até mesmo na questão de dinheiro; bem, em tudo excepto em honradez, e digo isso porque, ainda que a minha nova senhora fosse absolutamente justa, não devo nunca deixar de declarar, em todas as ocasiões possíveis, que a anterior, embora pobre, era de uma honestidade absoluta, como não pode haver maior». In Daniel Defoe, Moll Flanders, 1722, A Vida Amorosa de Moll Flanders, Publicações Europa América, 1998, ISBN 978-972-104-443-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT