sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Moll Flanders. Daniel Defoe. «Contava então por volta de dez anos, e começavam a surgir em mim os traços da mulher que viria a ser, pois era muito séria e humilde, bem-educada…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Respondi que sim e insisti que ser capaz disso era ser uma dama, pois, acrescentei, sabia da existência de uma mulher assim, que consertava rendas e lavava chapéus de senhoras, ela era uma dama, eu disse, e chamavam-na de madame. Pobre criança, comentou a minha bondosa mãe de criação, ser uma dama como essa não é difícil, pois ela é uma pessoa de baixa reputação e teve dois ou três bastardos. Não entendi coisa alguma, mas respondi, tenho a certeza de que a chamam de madame, que não trabalha de criada para ninguém e que não faz serviços domésticos, e insisti que ela era uma dama e que eu também queria ser uma dama como ela. Também disso decerto se inteiraram as senhoras, e divertiram-se a valer, e de vez em quando as moças, as filhas do senhor prefeito, vinham-me visitar e indagavam onde estava aquela daminha, o que me deixava não pouco orgulhosa de mim mesma. Isso durou bastante tempo; as moças me visitavam amiúde, e às vezes traziam outras consigo, e assim tornei-me conhecida em toda a cidade.
Contava então por volta de dez anos, e começavam a surgir em mim os traços da mulher que viria a ser, pois era muito séria e humilde, bem-educada, e como havia escutado as moças dizer que eu era muito bonita e que seria uma mulher de grande formosura, tenham certeza de que ouvi-las pronunciar tais coisas me deixava bastante orgulhosa; todavia esse orgulho não tinha ainda maus efeitos sobre mim; só que, como frequentemente me davam dinheiro, que eu entregava à minha velha mãe de criação, ela, muito honesta, fazia questão de gastá-lo todo comigo, comprando-me chapéus, roupa de baixo, luvas e fitas, e eu andava sempre muito bem-vestida e limpa, porque de uma coisa eu tinha certeza: mesmo que vestisse farrapos, sempre estaria limpa, pois eu mesma os lavaria; como ia dizendo, quando me davam dinheiro, a minha bondosa mãe de criação muito honestamente gastava-o comigo e logo contava às senhoras o que ela comprara com o dinheiro que me haviam dado, o que as levava a me darem mais, até que por fim, um dia fui chamada pelos magistrados, segundo entendi, para trabalhar como criada, mas a essa altura eu me tornara uma trabalhadora tão hábil, e as senhoras eram tão generosas comigo que ficava claro que eu podia me manter por minha conta, ou seja, era capaz de ganhar para a minha mãe de criação o quanto fosse necessário para que ela me mantivesse; portanto, ela disse-lhes que, se a autorizassem, ela ficaria com a dama, como me chamavam, para ajudá-la e para dar aulas às crianças, actividade que eu estava habilitada a fazer, uma vez que era muito ágil no meu trabalho e tinha boa mão para a agulha, embora fosse ainda muito jovem.
No entanto, a generosidade das senhoras da cidade não terminou aqui, pois, ao se inteirarem de que eu já não era mantida pela assistência pública, como antes, passaram a me dar dinheiro mais amiúde, e à medida que fui crescendo davam-me trabalho para fazer, como coser roupa de baixo, remendar rendas e consertar chapéus, e não só me pagavam por essas tarefas como me ensinavam a fazê-las, de modo que passei a ser realmente uma dama, tal como entendia o termo e como desejara sê-lo; nessa época já estava com meus doze anos, e não só adquiria as minhas roupas e entregava o dinheiro à minha mãe de criação a fim de pagar a minha manutenção, como passei a ter dinheiro também para mim. As senhoras costumavam-me dar roupas usadas, delas ou das suas filhas, além de meias, anáguas, vestidos ou uma coisa e outra, que minha mãe de criação administrava para mim como verdadeira mãe: cuidava delas e me obrigava a consertá-las da melhor forma possível, pois era esplêndida dona de casa. Por fim, caí de tal forma nas graças de uma dessas senhoras que ela quis que eu fosse morar na sua casa durante um mês, para fazer companhia às filhas, como disse.
Ora, o gesto era de extrema gentileza, mas como minha idosa e boa mestra lhe disse, a menos que ela decidisse ficar comigo para sempre, aquilo faria à daminha mais mal do que bem; é verdade, disse à senhora, então ficarei com ela em casa uma semana, para ver como minhas filhas e ela se relacionam e para melhor conhecer o seu carácter, e então poderei dizer-lhe algo mais; nesse entretanto, se alguém vier visitá-la aqui, como veio a acontecer, diga simplesmente que a mandou em visita à minha casa. A decisão foi prudente, e fui para a casa da senhora; fiquei tão feliz ali com as jovens, e elas se sentiram tão encantadas comigo que muito me custou deixá-las, e também elas se mostraram pouco propensas a se separar de mim». In Daniel Defoe, Moll Flanders, 1722, A Vida Amorosa de Moll Flanders, Publicações Europa América, 1998, ISBN 978-972-104-443-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT