domingo, 11 de fevereiro de 2018

Ambas as Mãos sobre o Corpo. Maria Teresa Horta. «… tentando ultrapassar no tempo a marca profunda deste em tudo; a cabeça derrubada devido ao peso da abundância dos cabelos enrolados perto da nuca, quase soltos, quase livres»

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O Sono
«(…) Perto da balaustrada onde me encosto, recebendo no rosto a aragem dormente que se levantou há pouco e parece mover as pregas transparentes da túnica de pedra, da túnica transparente da mulher que resguarda os seios com as mãos: uns seios de pedra numas mãos de granito, ossudas, distendidas. E ela, sem a olhar, encosta a cabeça às
suas pernas frias, imóveis. Vejo-lhe daqui o tecido branco, leve, do fato esvoaçando brandamente em redor do seu corpo. Leve. Demoro-me já no terraço enorme, a gozar o enorme silêncio da madrugada sobre o sono dos outros, entrecortado ou profundo, que ainda permanece intacto; um silêncio que o deslizar dos seus pés descalços não desfaz, nem o esvoaçar do meu fato negro somente preso no pescoço, quebra de encontro à estátua que não olho e da qual apenas sinto o contacto na pele da minha nuca descoberta. Lá em baixo o jardim é um universo vazio. O buxo, aparado rente, delineia as áleas. A mulher entreabre os olhos. Vejo-a tremer no seu fato branco, tão leve; quase transparente. Encostada à balaustrada cinzenta de pedra trabalhada, olho o portão de grades, lá no fundo, fechado. E a mulher entreabre os lábios, pouco-a-pouco. Há na sua voz um acento febril, imperfeito, às vezes apático mas sempre febril.

O Tempo
A saia de brocado bordado a pequenas pérolas, o corpete justo igualmente de brocado, bordado a ouro geometricamente em redor dos seios pequenos, brancos, junto ao decote grande, profundo. O pescoço esguio, um pouco inclinado, sustenta uma cabeça pequena quase derrubada parece que devido ao peso dos cabelos negros, enrolados, abundantes, perto da nuca, dando a impressão constante de se irem desmoronar, soltar-se e correrem pelas costas: quentes, livres, numa alegria espontânea, até às ancas ou mesmo mais abaixo já nas coxas encobertas, certamente de pele tão branca como a do pescoço, quase mármore ou quase areia; e as mãos, uma solta sobre o brocado bordado da saia comprida, pesada, a roçar o chão ao de leve, a outra na borda do tampo de uma mesa de madeira trabalhada ou talvez seja apenas o efeito do tempo sobre a pintura que dê essa impressão e que pelo contrário ela seja lisa, brilhante: também nos olhos, melhor, no olhar vago, existe uma nebulosidade, um vácuo, provavelmente devido à tinta deteriorada ou a qualquer mancha de luz, a qualquer brilho, a qualquer sombra de ramo de qualquer árvore do parque, projectada através das enormes janelas em determinados pontos da sala, sabe-se lá se até ao negro dos seus cabelos, inclinada sobre o quadro que segura a aproximá-lo dos olhos.
Inclinada, disse eu, a erguê-lo do chão por de trás da arca desconjuntada, as pernas de encontro aos pregos amarelos agora ferrugentos da arca, as pernas já magoadas a sustentarem, a equilibrarem o corpo. Aproximou mais o quadro enquanto se ia endireitando, aproximou-o mais para logo o afastar num movimento brusco, repelindo-o para melhor conseguir ver a mulher ou apenas repelindo-o instintivamente? Encosta-o à parede por detrás da arca com a moldura suja, estragada, a ver-se-lhe o dourado aqui e além. Deixa-o no chão. O olhar vago, nebuloso, adquire um brilho novo... Endireita-se sem deixar de fitar a mulher, a boca apenas um risco mais pálido na palidez do rosto. Durante segundos conserva as mãos estendidas como se fosse tornar a erguê-lo; a pedra facetada do anel brilhando na penumbra, pesando na mão direita, os dedos tensos. Vê a saia bordada a pequenas pérolas dissimulando as pernas, o pescoço derrubado e aquele ar alheio, um completo vácuo, uma completa e total indiferença escondida numa frieza contradita pela humidade da boca. Deixa os braços caírem de maneira cortante como se quisesse rasgar a enorme quantidade do tempo, tempo secular, profundo, mudo, que as separa..., e é assim que a fita: como se através de todo aquele tempo sem movimento algum, sem memória, do qual não tem conhecimento, do qual ninguém lhe falara, pretendesse entrar, mergulhar e unir-se a ela tal como uma pele, uma pele quase mármore, quase areia, a sua pele de anémica escondida num tom de sol, sol absorvente, lá fora gorduroso ou seco, conforme as horas do dia. E eram os olhos de tal maneira claros que se diluíam perante uma luz mais forte, que se intensificavam, velados na obscuridade, repletos sempre de um vácuo que recusava qualquer aproximação. Fitava-os, todavia fitava-os, tentando destruir a barreira mole, peganhenta da indiferença, tentando ultrapassar no tempo a marca profunda deste em tudo; a cabeça derrubada devido ao peso da abundância dos cabelos enrolados perto da nuca, quase soltos, quase livres». In Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, Publicações Europa América, colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT