sexta-feira, 23 de março de 2018

A Bolsa e a Vida. Jacques Le Goff. «O penitente é obrigado a explicar o seu pecado em função da sua situação familiar, social, profissional, das circunstâncias e da sua motivação»

Cortesia de wikipedia e jdact

Entre o dinheiro e o Inferno: a usura e o usuário
«A usura. Que fenómeno oferece, mais do que este, durante sete séculos no Ocidente, do século XII ao XIX, uma mistura tão explosiva de economia e de religião, de dinheiro e de salvação, expressão de uma longa Idade Média, em que os homens novos eram esmagados sob os símbolos antigos, em que a modernidade trilhava dificilmente um caminho entre os tabus sagrados, em que as astúcias da história encontravam na repressão exercida pelo poder religioso os instrumentos do êxito terrestre? A formidável polémica em torno da usura constitui de certo modo o parto do capitalismo. Quem pensa nesse resíduo, nessa larva do usurário que é o pawnbroker dos romances ingleses do século XIX e dos filmes hollywoodianos posteriores à grande crise de 1929, torna-se incapaz de compreender o protagonista da sociedade ocidental, essa monstruosa sombra debruçada sobre os progressos da economia monetária, e as teias sociais e ideológicas que se enredaram em torno desse Nosferatu do précapitalismo. Vampiro duplamente assustador da sociedade cristã, pois esse sugador de dinheiro é muitas vezes assimilado ao Judeu deicida, infanticida e profanador de hóstia.
Num mundo em que o dinheiro (nummus em latim, demer em francês) é Deus, em que o dinheiro é vencedor, o dinheiro é rei, o dinheiro é soberano (Nummus vincit, nummus regnat, nummus imperat; em que a avaritia, a cupidez, pecado burguês de quem a usura é mais ou menos a filha, destrona, na hierarquia dos sete pecados capitais, a superbia, o orgulho, pecado feudal, o usurário, especialista em empréstimo a juro, torna-se um homem necessário e detestado, poderoso e frágil. A usura é um dos grandes problemas do século XIII. Nessa data, a Cristandade, no auge da vigorosa expansão que empreendia desde o Ano Mil, gloriosa, já se vê em perigo. O impulso e a difusão da economia monetária ameaçam os velhos valores cristãos. Um novo sistema económico está prestes a se formar, o capitalismo, que para se desenvolver necessita senão de novas técnicas, ao menos do uso massivo de práticas condenadas desde sempre pela Igreja. Uma luta encarniçada, quotidiana, assinalada por proibições repetidas, articuladas a valores e mentalidades, tem por objectivo a legitimação do lucro lícito que é preciso distinguir da usura ilícita. Como uma religião que opõe tradicionalmente Deus e o dinheiro, poderia justificar a riqueza, sobretudo a riqueza mal adquirida?
O Eclesiástico (XXXI, 5) dizia: aquele que ama o dinheiro não escapa do pecado, o que persegue o lucro ilude-se. E o Evangelho o acompanhou: Mateus, um publicano, colectar de impostos que abandonou a sua mesa coberta de dinheiro para seguir Jesus, advertiu: ninguém pode servir a dois senhores: ou odiará a um e amará o outro, ou se afeiçoará ao primeiro e desprezará o segundo. Não podeis servir a Deus e a Mammon. Mammon simboliza, na literatura rabínica tardia, a riqueza iníqua, o Dinheiro. Lucas também testemunhara com as mesmas palavras. Mas se os códigos, as leis, os preceitos, os decretos condenam a usura, Deus se interessa apenas pelos homens, da mesma forma que o historiador, de quem Marc Bloch dizia que tem os homens como caça. Consideremos portanto os usurários.
Para encontrá-los é preciso interrogar outros textos além dos documentos oficiais. A legislação eclesiástica e laica se interessa com prioridade pela usura, a prática religiosa dos usurários. Onde encontrar o vestígio dessa prática no século XIII? Em dois tipos de documentos originários dos géneros antigos que, na virada do século XII para o XIII, sofreram uma modificação essencial. Os primeiros agrupam as Sumas ou manuais dos confessores. Durante a Alta Idade Média, as tarifas de penitência segundo a natureza dos actos pecaminosos eram consignadas nos penitenciais. Seguindo o modelo das leis bárbaras, consideravam os actos, não os actores. Ou melhor, as categorias de actores eram jurídicas: clérigos ou laicos, livres ou não-livres. Mas do final do século XI ao início do século XIII, a concepção de pecado e de penitência muda profundamente, se espiritualiza, se interioriza. De agora em diante, a gravidade do pecado é medida pela intenção do pecador. É preciso, pois, pesquisar se essa intenção era boa ou má. Essa moral da intenção é professada por todas as escolas teológicas do século XII, da de Laon às de Saint-Victor de Paris, de Chartres e de Notre-Dame de Paris, por todos os teólogos de primeira linha, entretanto antagonistas em muitos outros problemas, Abelardo e São Bernardo, Gilberto de la Porrée e Pedro Lombardo, Pedro o Cantor e Alain de Lille. Disso resulta uma mudança profunda na prática da confissão. De colectiva e pública, excepcional e reservada aos pecados mais graves, a confissão se torna auricular, da boca para o ouvido, individual e particular, universal e relativamente frequente. O quarto concílio de Latrão (1215) marca uma grande data. Torna obrigatória a todos os cristãos, isto é, homens e mulheres, a confissão, ao menos uma vez por ano, durante a Páscoa. O penitente é obrigado a explicar o seu pecado em função da sua situação familiar, social, profissional, das circunstâncias e da sua motivação. O confessor deve levar em conta esses parâmetros individuais, e tanto quanto a satisfação, isto é, a penitência, deve procurar sobretudo a confissão do pecador, recolher a sua contrição. Ele deve de preferência purificar uma pessoa em vez de castigar um erro». In Jacques Le Goff, A Bolsa e a Vida, 1986/1989/2004, Editorial Teorema, 2006, ISBN 978-972-695-683-9.

Cortesia de ETeorema/JDACT