terça-feira, 17 de abril de 2018

Ensaio sobre os Latinismos dos Lusiadas. Carlos E. Correa Silva (Paço d’Arcos). «… é evidente que me faltava a cultura necessária para realizar esse trabalho exaustivo. O motivo de ordem objectiva é mais importante e merece ser detidamente analisado»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Uma dissertação de licenciatura que tem por título Ensaio sobre os latinismos dos Lusíadas representa, ao mesmo tempo, por mais que isto pareça paradoxal, uma velharia e lima novidade. ... porque o grau de latinidade dos Lusíadas estava por assim dizer determinado desde o dia, já remoto de três séculos, em que Manuel Fana Sousa escreveu o seu comentário do poema, não deixando muito que respigar aos futuros comentadores dos Lusíadas (assim diz, ipsis verbis, Epifânio Dias). Uma novidade…, porque uma monografia, feita à luz dos modernos métodos filológicos, que abrangesse, num estudo do póemá inteiro, os latinismos de carácter glótico abundantemente esparsos por todo ele estava ainda por fazer. Essa monografia, Faria Sousa não a escreveu nem a podia escrever. Era um humanista, é de primeira plano, pela sua imensa cultura: não era um filólogo. Nem no seu tempo havia filologia, tal como nós hoje a entendemos : a ciência sistematizada que obedece a leis e que tem como objectivo estudar uma língua através de textos escritos. Num contexto mais amplo, a filologia também se ocupa da literatura e da cultura de um determinado povo. Inicialmente, a filologia limitava-se ao estudo das ideias mediante a crítica textual. No entanto, esta ciência progrediu e começou a interessar-se pela história, instituições e manifestações culturais. Esse interesse surgiu como objectivo obter um conhecimento mais amplo do mundo clássico através do estudo de textos literários.
É verdade que já.então existia a curiosidade científica no campo da filologia. E não datava da véspera. (Cfr. Cícero no Orator Quinti; Ifpilmo nas Inttitutiones oratoriae). Impor preceitos à maneira dos defuntos gramáticos, procura registar factos, interpretar as anomalias aparentes e abraçar numa visão de conjunto a vida das línguas no tempo e no espaço. Se pensarmos que, em vez do moderno conceito de evolução, ainda reinava no espírito de Camões o de corrupção das línguas, se pensarmos que os seus coevos de além Pirinéus como Budé filiavam o francês no grego, e que no século XVIII lexicógrafo Morais procurava no alemão empor o étimo remoto do nosso verbo emparar, se pensarmos enfim que, já bem perto de nós, ainda Castilho, espírito representativo da cultura literária da sua época, revelou na Conversação preambular do Dom Jayme a mais completa incompreensão do problema filalógico, então, compreenderemos que pedir um trabalho desse género a Farte Sousa, não obstante os seus conhecimentos de literatura latina, seria não levar em conta as curvas da história da ciência. Natura non facit saltús. Essa monografia de carácter glótico..., houve já no nosso tempo, alguém que estava decerto indicado para a compor: Epifânio Dias.
Dotado de um espírito, muito arguto e de uma grande penetração filológica, possuidor daquela vasta e sólida cultura humanística necessária para que no trabalho misterioso do sub-consciente se estabelecessem os nexos entre frases portuguesas e frases latinas, Epifânio Dias era o homem indicado para esse trabalho. Na sua edição dos Lusíadas deixou muitos e muitos achados seus, muitos latinismos anotados ao correr da pena no comentário das estâncias do poema, que no entanto se limitam aos capítulos mais inte- ressantes (sintaxe e semântica). Note-se que Castilho, escrevia em 1862, (seis anos antes de Adolfo Coelho publicar A língua portuguesa). Deixou materiais dispersos. Morreu sem ter feito uma obra de conjunto. E essa obra de conjunto que estava à espera de um estudioso, res omniumourésnullhis (?), é hoje tentada por um aluno da Secção de Filologia Clássica da Faculdade de Letras de Lisboá. Esta dissertação não é todavia um trábalho definitivo. É apenas um ensaio. E isto por dois motivos : uma de natureza subjectiva, outro de ordem objectiva. Um de natureza subjectiva. Sem ter de recorrer à falsa modéstia, que é, na definição de Ernesto Heilo, a mentira oficial dos orgulhosos, de via reduzida, é evidente que me faltava a cultura necessária para realizar esse trabalho exaustivo. O motivo de ordem objectiva é mais importante e merece ser detidamente analisado.
Como é que se pode escrever um trabalho definitivo sobre os latinismos dos Lusíadas, isto é, sobre a contribuição que Camões trouxe ao enriquecimento da nossa língua literária se nós não sabemos com exactidão qual era o grati de (?), enriquecimento dessa língua na fase imediatamente anterior à publicação do poema?! Um trabalho desse género pressupõe a publicação de monografias sobre a língua de Garcia Resende, de Damião Goes, de Sá Miranda, de António Ferreira, de João Barros., etc. Um século antes da publicação do poema, já o Renascimento criara raízes em Portugal, pelo menos sob o aspecto, único que aqui nos interessa, do gosto pela leitura dos clássicos latinos; prova-o a curiosa figura do bispo de Évora Garcia Meneses, hás letras gregas sabedor, como dizia Garcia Resende e que maravilhara em Roma o cardeal Sadoleto pela elegância do seu latim». In Carlos Eugénio Correa Silva (Paço d’Arcos), Ensaio sobre os Latinismos dos Lusiadas, 1931/35, imprensa da U. de Coimbra, 1972, Imprensa N. Casa da Moeda, Separata de O Instituto, vols. 79 a 82, à memória de Augusto Epifânio Silva Dias.

Cortesia de UdeCoimbra/INCM/JDACT